Crónicas do Corvo Negro - Pergaminho da Cidade do Mar
O sopro da vida que se some é abraço da natureza que o acolhe e faz girar a roda da vida. É uma constante aventura entre mundos, onde a mãe que cria toca e gira o sopro dos seres que alberga. O som de um sopro da vida quebrado não é o fim de uma existência, é passagem para outros mundos, onde neles, nos esperam novas aventuras e novos conhecimentos.
A imaginação não revela coisas novas, nem faz acreditar que elas existem, quando na verdade, no profundo da alma, já tanto vivemos e presenciámos e que, fielmente, a consciência nos oferece um deslumbre dessas provas antigas, de outros portos onde a roda girou e nos deixou para viver um novo sopro.
Sonhar é crescer, crescer é acreditar que os sonhos são possíveis e acreditar é concretizar todos esses sonhos transformados em vontade, mesmo que, sejam sentidos de outra forma diferente àquela que o sonho inspirou.
Há quem simplesmente tem o mundo nas suas mãos. Há quem tenha simplesmente o poder de equilibrar o sopro da vida dos outros, mantendo-o são e por mais tempo. Há quem simplesmente foi abençoado a alcançar os seus sonhos revelados ainda em tenra idade. Afinal, há silêncios onde as palavras sussurradas, são mais poderosas do que todos os sons do mundo.
O pergaminho que saúdo cheira a mar. O som que se ouve é canção de embalar. O búzio evocado do fundo do mar, permite-me oferecer-vos esta história de encantos. Uma história de persistência e sonhos realizados. Boa viagem.
A brisa salgada agitava no ar um turbilhão de pontos luminosos que se reflectiam no manto de areia que se estendia radiante aos seus pés. As linhas do horizonte mostravam uma cascata de sonhos e visões que só a alma conseguia interpretar, naquele simbólico silêncio cheio de segredos que a voz é incapaz de descrever.
A mulher que assistia inspirada àquela alegoria da natureza, enterrou os pés naquele manto quente sentindo-se parte de um todo nascido e repartido com formas diferentes.
Deixou-se vislumbrar pela visão do mar, pesado, vasto, belo, forte e misterioso, esculpindo as rochas que separavam as fronteiras dos grandes senhores da terra e do mar. Uma constante conquista de prenúncios e agitações de destinos por concretizar. A espuma bravia desenhava na areia mitos sobre o seu senhor, símbolos ocultos e indecifráveis aos olhos não oriundos da sua natureza. A terra apenas podia abraçá-los e a brisa testemunhar as suas formas. Os segredos mantinham-se segredos.
Lentamente, os sentidos captaram um melodioso cântico vindo do mar, elegantemente transportado pelas ondas longínquas que pareciam concorrer para chegar aos pés da ouvinte. A brisa enternecida e encantada pela melodia, rodeou-lhe os pensamentos terrenos e intensificou as sensações.
Os seus olhos fecharam-se deleitados perante o enleio da melodia. Por momentos, o restante mundo fez um silêncio peculiar. Um silêncio, no qual, todas as vozes se transformaram numa linguagem comum, tão antiga, sentida e entendida por qualquer ser. O que ouvia, fê-la sentir-se contornada por outras formas de que é feita toda a natureza.
Deambulou pela praia vazia, no seu longo manto de areia brilhante que amparava os seus sentidos, sentindo um forte desejo de abraçar o mar. Os pés concederam o desejo e tocaram no véu translúcido do outro mundo.
O toque foi gentil, suave, agradável. A espuma rolada, amistosamente aos seus pés, trazia aquela melodia que advinha das profundezas daquele outro mundo, onde governa o senhor do mar.
O chamamento era forte, doce, irresistível. Entrou.
O corpo terreno, foi ficando leve, tão leve quanto aquele véu que a rodeava, confortando-a aos poucos no seu regaço. Os pés sentiram o manto de areia roubado pelo senhor do mar e presenciou a nova vida que este conquistou.
A melodia era cada vez mais hipnotizante de tão bela. Hinos do mar. Elegantes alegorias e mitos de tantas civilizações que o mar viu nascer, crescer e morrer. Eternos testemunhos de eras veementes de história.
O ar do corpo fora roubado. A asfixia era indolor. O corpo pertencia unicamente ao mundo marinho. Brânquias nasceram no pescoço, escamas desenharam nas pernas uma barbatana caudal em tons reluzentes outonais, estrelas-do-mar entrançaram os longos cabelos e lá permaneceram tão belas quanto a criatura que viam transformar-se.
A roupa terrena fora consumida pelo sal evidenciando o corpo nu da mulher-sereia, pelo qual, nasceram iguais escamas que ocultaram grande parte da sua pele humana.
A consciência era livro aberto que deixava ver com clareza as novas vivências, sentindo em perfeição tudo o que os seus sentidos lhe ofereciam. A barbatana caudal logo se agitou, mergulhando freneticamente pelo mar seu destino e a velocidade aumentou ao sabor da curiosidade que os seus olhos conheciam aquele mundo oculto.
Um mundo formado de cores inéditas provocadas pelos extensos e diversificados corais, estendidos por um encanto incomum, ininteligível ao conhecimento terreno. Os peixes sussurraram vozes que a mulher-sereia compreendeu. Sons estranhos corrompiam o silêncio habitual que imaginava existir dentro do forte manto de água.
A melodia intensificou-se e alteou no chamamento intencional. O mar era vasto e a linha do horizonte mostrava apenas um véu de água sem fim, pois não havia sinal de qualquer fronteira com o senhor da terra. Uma ligeira onda impeliu-a, com cuidado, para que esta a seguisse. Encaminhou-a a uma gruta sustida numa parede rochosa acima de uma cratera de um vulcão. A lava que se via escorrer pela estrada de rocha, revelava o poder infinito da mãe natureza.
Uma nova gruta se evidenciou. Percorreu todo um corredor de paredes rochosas delineadas por algas que dançavam com pequenas e estranhas criaturas do mar. Obliquamente aquele caminho revelou uma fenda no final da gruta, um indício para um lugar igualmente desconhecido e revelador de surpresas.
A pequena abertura gelatinosa adquiriu uma cor espectral circular. Um portal. O corpo ergueu-se em vontade de o atravessar. Uma súbita adrenalina atingiu as escamas como a ventura de um encontro muito aguardado.
O círculo do portal abraçou-a e rodou para o outro lado extinguindo-se após a sua passagem. Nenhum portal subsistia no mesmo local. Pois existem lugares no mundo comum, que são segredos, poderosos tesouros que não devem ser revelados, e quando o são, há uma certeza que não colocam em risco a sua existência.
O abismo que parecia desenhar-se à sua frente, foi substituído pela visão de um soberbo reino marinho que se perdia de vista. Uma cidade maravilhosamente construída e delineada à base de conchas e corais. Finas e altas torres de búzios serviam de casa aos seus habitantes, contrastando com as praças e pontes unificadas numa histeria de cor e beleza.
Criaturas do mar jamais vistas, mergulhavam numa cidade de vida diária e habitual. Mulheres-peixe e homens-peixe, seres belos e perspicazes que davam vida àquele lugar mágico, saudaram a recém-chegada e ofereceram-lhe passados de história e partilharam um presente experimentado.
A recém-sereia sentia-se parte daquele povo, semelhante às suas próprias vidas e comoções, numa união sã e confortável. Os sentidos apuraram-se, uniram-se num todo comum. A mãe natureza é, absolutamente, a mãe da arte que cria e gere vida.
O convívio ali vivenciado ofereceu-lhe maravilhosos momentos. Momentos que a saudade jamais conseguirá apagar, porque foram verdadeira e harmoniosamente sentidos, dotados de uma profundidade e valor consciencial que só no silêncio profundo da alma é possível sentir.
Na hora de dormir, sob a vasta escuridão do oceano, a concha que a acolheu fechou-se transportando-a para um sono sereno. A despedida não teve sabor de adeus, teve gosto a felicidade por ter vivido momentos inesquecíveis, a compensação mais desejável de qualquer realidade. Os olhos fechados deixaram cair uma lágrima em testemunho da nostálgica satisfação.
A brisa tocou-lhe novamente no rosto, os pés voltaram a sentir o calor do manto de areia, o corpo pesou sob o chão e a sereia-mulher sentiu-se de novo no mundo do Senhor da terra. Abriu os olhos. O mar parecia despedir-se com um segredo. Subitamente tomou conta do sonho acordado.
A sensação ainda presente na pele, o brilho das escamas que desapareciam do corpo terreno, os cabelos desprendidos da longa e larga trança libertados pela brisa a pedir confissões, fê-la acreditar que por vezes, o inimaginável não é absurdo. Que por vezes, os sonhos e os desejos não são alucinações nem exageros da alma, são momentos que a vida oferece para enriquecer as vivências e esperanças de cada um.
Olhou novamente o mar como se tivessem roubado uma parte de si. Nele, avistou inúmeros seres que mergulhavam numa histeria de encontros. Golfinhos. Belas e encantadas criaturas marinhas que desfilavam sobre o véu do senhor do mar espalhando testemunhos da grandeza do seu mundo.
Só aos olhos da sereia-mulher era possível ver sereias e homens do mar no lugar dos chamados golfinhos. A sua forma era um segredo protegido aos olhos dos homens que enfeitiçados, só viam aquela forma marinha a que chamam de golfinhos.
Um sorriso brilhou no seu rosto que se reflectiu na água translúcida e o levou até à cidade na gema do mar, onde nela permanece, parte de si, dentro da concha onde o sono inquilino deixou uma lágrima transformada em pérola. Naquela concha só sua, vinga um portal que a aguarda sempre que os seus olhos se fecham no mundo do outro senhor.
A ligação com o mar tão forte fez crescer dentro de si uma vontade protectora pelo povo do mar, o seu povo. Também a sereia- mulher enfeitiçou os olhares alheios e se vestiu de bióloga, protectora do mar e dos seus habitantes no mundo onde governa o senhor da terra.
Eis que o Corvo negro a encontrou. Numa noite fresca onde o luar era amante do mar, iluminando os seus segredos. Pois a lua é antiga e através da sua luz, o mundo já revelou mais segredos que pela luz do grande sol. O corvo negro grasnou e esperou na praia. Os momentos partilhados sobre ilhotas pelo grande oceano, intensificaram a sua amizade e os gostos literários tão comuns naquele vasto continente de nome Fiacha. Um cantinho do mundo do senhor da terra que o mar invejava.
A bela sereia apareceu sobre as águas que se misturavam na espuma das ondas que vinham do alto mar. O corvo negro sobrevoou até à sua amiga Wavegirl, saudando-a com ternura.
O anfitrião convidou-a ao seu salão. Não foram precisos artifícios ou feitiços. Cada um seguiu o seu meio de chegar ao seu destino, o corvo negro sobrevoando o horizonte marinho e a Wavegirl mergulhando nele próprio.
Chegados à costa com o sibilar do grande castelo lá no alto, em constante chamamento pela trombeta de dente do grande dragão, oferecida ao dragão negro pelos seus antepassados, a Wavegirl começou a sua metamorfose.
As pernas elegantes deram os passos decididos em direção à grande casa do corvo negro. A raposa esperou-a no limiar da floresta que circunda o castelo, oferecendo-lhe um vestido simples que encobria e embelezava o corpo nu da sereia-mulher Wavegirl.
No miradouro do castelo os restantes membros já chegados puderam assistir a um belíssimo mergulho de inúmeros golfinhos que regressaram a casa depois de escoltarem uma pérola até ao outro lado do seu mundo. As sereias emitiram um cântico em direção à cidade.
No salão a ampulheta para o grande encontro encontra-se quase deserta. O estalar da chama a consumir fogo é prova de que os pergaminhos chegam ao fim. O anão ardente conta os membros que ainda faltam chegar, semeando a curiosidade e vontade de os conhecer.
O salão decorado pelo gosto literário, mostra que os seus membros, todos diferentes uns dos outros, são como todos os géneros literários e escritas respectivas que nascem para encantar os diferentes leitores. A harmonia é página que vinga, a curiosidade o separador que marca as passagens agradadas e a amizade é capa de livro que não corrói com o tempo, envelhece na ternura de ter existido e tocado pela mão que lê.
A Guardiã do Tempo