Opinião:
Desengane-se quem está à espera de entretenimento fácil: o João Barreiros (JB)autor tem uma vincadíssima personalidade, não tem “papas na língua”, não tem receio de mostrar a violência, de horrorizar e de chocar. Às vezes roça o absurdo, outras toca o inimaginável, às vezes arrepiamo-nos de medo, muitas vezes surpreende-nos e ficamos chocados. Mexe connosco, abala as nossas crenças, e adoramos, ou odiamos, mas não conseguimos ficar indiferentes. O seu humor é habitualmente classificado como negro, mas é mais do que isso: é implacável, politicamente incorreto, por vezes até cruel ... ah, mas que bem que sabe, de vez em quando, ler alguma coisa assim! É este sentimento que me leva a afirmar que com os livros do Barreiros descobri o meu “lado negro da Força”: perante cenas que o bom senso e a moralidade me diziam serem horríveis, eu ficava deliciada, achava-as fantásticas, às vezes até hilariantes, mesmo que, volta e meia, ficasse de “queixo caído” com o choque.
É que tanto a aparente banalidade com que o autor expõe o horror, bem como o embelezamento com que às vezes brinda as descrições mais terríveis, fazem com que nos deliciemos perante os detalhes mais sombrios e as descrições mais gráficas. Não o nego: neste livro, os mundos do futuro são mundos violentos, onde grassam a destruição e a miséria, onde não há lugar para celebrações de heroísmo ou para lamechices. Estes mundos são assustadores, alienígenas, ou apocalíticos, mas, independentemente da sua natureza, o humor do autor não nos deixa ficar deprimidos.
Houve apenas um fator que me refreou a leitura: os conceitos tecno-futuristas muito próprios que pululam no universo Barreiros e que, ao abundar em alguns dos contos, me fizeram suspirar por um glossário, estilo dicionário Barreirês – Português! Porém, à medida que avançava, foi-se tornando mais fácil, até porque alguns conceitos começaram, ao longo do livro, a ser recorrentes. Surpreendentemente, acabei por sentir que afinal o glossário talvez não fosse assim tão boa ideia - o facto de não perceber tudo acabou por conferir aquele universo uma aura de mistério, que me fez imaginar e especular ainda mais, e isso trouxe uma certa “piada” acrescida. Afinal, o futuro é
desconhecido.
Por tudo o que já mencionei, estaria a mentir se dissesse que recomendo este livro, ou o João Barreiros a toda a gente. Mas penso que todos os amantes de outros mundos deviam, pelo menos, experimentar, até porque, passada a estranheza inicial, acabamos por ser devidamente recompensados. Quando tudo parece terrível, lá nos perdemos nos ambientes sugestivos, somos envolvidos, e sentimos empatia pelas personagens, por muitas falhas e defeitos que eles tenham - e sejam elas humanas, animais, ou, espante-se, robôs ou seres alienígenas! E depois, está sempre connosco a possibilidade de muitos livros de FC: perante a interrogação do futuro e tendo em conta, quer a nossa evolução até agora, quer o desconhecido futuro, desfila perante nós toda uma série de possibilidades, nem todas assim tão impossíveis. Além disso, uma das características que, para mim, o João Barreiros tem de melhor é que não consigo compará-lo a nenhum outro autor que já tenha lido. Não encaixa facilmente em nenhuma das minhas “gavetas”, e isso é algo que, para mim, é fantástico!
Entretanto, dos quinze contos apresentados, há algumas “pérolas” para todos os gostos:
» Brinca comigo: como explica Barreiros na nota introdutória, este é um (...) universo onde a humanidade partiu para outras paragens”, e onde os “os brinquedos hão-de vaguear até que se estraguem de vez, num vago e terno desespero, em busca de um dono que nunca mais voltará” (JB na nota introdutória). Uma ideia destas é, desde logo, irresistível, e o conto está muito bem conseguido. Os brinquedos desconjuntados, na sua solidão e confusão, despertam de imediato a nossa empatia, mantendo-nos envolvidos até ao fim. É um dos meus grandes favoritos, logo a abrir a coletânea.
» Efemérides: a ideia é do melhor – publicado para “celebrar os 30 anos da chegada do Homem à Lua”, e o autor constrói uma realidade alternativa com o seu “toque”, ou seja, “sobre o que teria sido a colonização do nosso satélite com a tecnologia disponível nos anos sessenta”. Tive pena de ser tão curto, mas é um excelente conto, com uma conclusão pouco convencional(para quem não conhece o JB).
» Noite de Paz: Comecei por me sentir obviamente chocada com a atitude de Grinch do senhor Barreiros perante a época natalícia (omo é que se pode ter coragem de atacar uma coisa tão linda e tão fofa como o Pai-Natal?). Mas com toda aquela ação, em breve comecei a sentir um certo prazer perverso, admito em, como diz o autor, “(...)à guisa de celebração, pôr um ponto final na rotunda figura do Pai-Natal (...)”. Ai, ai, o Natal nunca mais será o mesmo!
» ASíndroma de Abraão: Uma “(..) nova história alternativa sobre a chegada do Homem à Lua”. Apesar de alguma dificuldade inicial em contextualizar-me, fui-me envolvendo, e as peças começaram a encaixar, com uma série de possibilidades a cruzarem-me o pensamento. Baseada na crença, patente na nota introdutória, de que “(...) as Civilizações alienígenas do Centro da Galáxia (se é que existe de facto vida inteligente além da nossa) vivem num estado de guerra permanente (...)” e que “Nada é dado de graça neste universo (...)”, este é um conto muito marcante e difícil de se esquecer.
» Por amor à prole: Mais uma história “filosófica”, e um bom entretenimento, com uma ideia prometedora. Se fosse um filme, o cartaz rezaria qualquer coisa como isto: “Num mundo destruído, uma mulher grávida sobrevive sozinha numa quinta hostil, rodeada de criaturas mutantes!” Um must! Mantendo o suspense até ao fim, e com um desfecho que não se esquece, fez com que eu nunca mais coma morangos da mesma maneira!
» Por detrás da Luz: Um conto revisitado para uma antologia inspirada em H. P. Lovecraft, também não tem um início fácil. No entanto, à medida que as pontas do véu foram sendo levantas e as peças do puzzle, começaram, finalmente, a encaixar, comecei a sentir-me dentro daquela Lisboa virada de pernas para o ar, até ao triunfo do horror, em jeito de celebração. À Lovecraft, mesmo.
» Se acordar antes de morrer: Comecei por torcer o nariz à ideia: não só estou ligeiramente farta de zombies como, para ajudar à festa, JB misturava zombies com robôs!!! Mas a leitura provou que o meu medo era totalmente injustificado, achei o conto excelente!. Surpreendente e com um bom ritmo, além do bónus de ser mais um "pontapé” no traseiro fofinho do Pai Natal, é um dos meus grandes favoritos.
» Um homem e o seu gato ou O Céu dos gatos é o inferno dos pardais: Excelente!
Adorei tudo: o contexto, o ambiente criado, as personagens felinas - o Senhor Luvas e a Miss Decibel são top! A imagem da gatinha pistoleira não me saiu da cabeça por muito tempo! Adorei a forma como o tema e o contexto podem servir de ponto de partida a tantas considerações sobre o futuro (e sobre o presente!). Leituras mais sérias à parte, o conto tem também entretenimento garantido para quem não quer pensar em significados mais profundos, o que faz dele, na minha opinião, um dos melhores da coletânea.
Antes de comprar este livro, procurei comentários online, e um dos desapontamentos mais mencionados é pelo facto de quase todos os contos já terem sido previamente publicados em coletâneas ou revistas do género. Como eu não conhecia nenhum deles, esta apresentação faz todo o sentido, e é uma mais-valia o facto de as histórias, pelos universos que se cruzam, pelas referências comuns, pelo estilo único de vocabulário que se vai repetindo, acabarem por se interligar todas.
É um livro para se ir saboreando aos poucos, que, a meu ver, só peca por uma coisa: tem poucos contos! Quero MAIS! E sem ter de os procurar, espalhados como estão por aí. Quero a “papinha” toda feita, ou seja mais um livro do JB com TODOS os outros contos já publicados e que eu não conheço!!!
Comentário feito pela minha amiga STARK Paula Pinto